Poucas coisas me acompanharam e continuam acompanhando em todas as fases da minha vida quanto as aventuras e peripécias do órfão da Vila mais famosa do México (e ouso afirmar que do Brasil também), o Chaves. Quem sobreviveu toda a infância durante os anos 80 certamente já ouviu e assistiu algum episódio do Chaves e se pegou gargalhando ou no mínimo dando uma risadinha de canto de boca com as piadinhas e tiradas inocentes, mas cheias de reflexões sociais e humanísticas que muitas vezes também nos fazia chorar e de certa forma formaram o caráter de muitos. Até hoje consigo aproveitar e me divertir com os episódios ou com os shorts que vemos nas redes sociais.
Sendo um grande admirador do Chaves e vendo que ele sempre teve uma receptividade muito grande em todas as idades e classes sociais, assumi a missão de dar forma um projeto de jogo que pudesse traduzir um pouco da simplicidade maliciosa do seriado, em um produto que também fosse acessível para o público, tanto em termos de regras quanto de preço.
Busquei orientar o desenvolvimento do produto de modo que o mesmo fosse portátil, barato, baseado em cartas, com ilustrações acessíveis para uma nova geração conhecer a série, mantendo regras simples, mas que ao mesmo tempo trouxesse em si as principais características dos personagens do Chaves. A ideia era maximizar uma experiência saudosista para quem já conhecia a série, mas dando a importância devida para integrar aqueles que estivessem tendo um primeiro contato com essa turminha.
Entendendo a peculiaridade e heterogeneidade desse público, coloquei como desafio criar o jogo pensando em um novo público de jogadores, contudo que ao mesmo tempo agradasse aos jogadores mais experientes mantendo algumas camadas estratégicas que pudessem ser exploradas.
Mas como conseguir transmitir toda essa experiência temática e de mecânica em apenas um jogo de cartas? A solução para esse desafio foi criar não apenas um, mas sim TRÊS jogos diferentes em um único produto, utilizando as mesmas cartas, com funções multiuso, aproveitando o mesmo material de componentes, através da criação de conjuntos de regras diferentes mas complementares entre si, em termo de complexidade e experiência de jogo.
As cartas do jogo ficariam focadas na apresentação dos personagens, que são a verdadeira essencial da série. Em cada carta colocaríamos os elementos necessários para que cada um dos tipos de jogo pudesse ser plenamente aproveitado. Além disso, precisaríamos dar um pouco de vida aos personagens, o que buscamos através dos bordões clássicos de cada um na série. Afinal, quem conhece o Chaves sabe que tudo que acontece com ele foi sem querer, querendo.
Tentando ainda dar um pouco mais de flavor e integrar o tema ao jogo, nomeamos cada um dos modos de jogo com alguma frase marcante da série e que tivesse relação direta com o feeling que o jogador teria durante a partida.
O primeiro modo de jogo, nomeamos como “foi sem querer querendo!”, e o seu objetivo principal era o de ser um introdutor da mecânica de draft com elementos de pedra-papel-tesoura. A ideia deste modo é o de explorar o que cada um dos personagens está “buscando”, qual outro personagem ele quer encontrar. Essa busca se baseia nas características da série, por exemplo, a Dona Florinda está procurando o Professor Girafales, ou ainda o Sr. Barriga está atrás do Seu Madruga para cobrar o aluguel.
Em cada turno, os jogadores recebem 3 cartas e fazem um draft parcial, passando 2 cartas para o jogador à esquerda, recebendo 2 cartas do jogador à direita. Com a mão final, cada jogador escolhe uma carta para ser colocada em cada um dos seus lados para ser confrontada com as cartas dos seus vizinhos. Aquele que conseguir “encontrar” o personagem que estava buscando, irá ganhar as cartas como pontos.
Esse modo objetiva apresentar para novos jogadores essa mecânica de draft e transmitir o conceito de leitura de informações incompletas que ela dá, ao mesmo tempo em que possibilita algumas ações de blefe nas cartas passadas. Tudo isso para mostrar que as vezes o resultado do turno não fica apenas ao acaso e que pode ser também sem querer, querendo!
Já o segundo modo de jogo, que nomeamos de “não se junte com essa gentalha!”, pretendemos criar um introdutor de jogo de gerenciamento de mão e de combinação de elementos, trazendo uma experiência mais próxima do jogo Uno, porém com algumas camadas a mais de complexidade.
Mantivemos neste modo o mesmo conceito de “busca” entre os personagens, mas dessa vez acrescentamos o conceito de “fuga”, ou seja, alguns personagens não poderiam ser encontrados, caso contrário aconteceria uma penalidade a um dos jogadores.
Em resumo, cada jogador iniciaria a partida com 7 cartas na mão e o objetivo seria o de baixar todas as cartas, ficando sem nenhuma carta na mão. Para isso, o jogador da vez teria que conseguir jogar uma carta de personagem da sua mão que tivesse um ícone de busca do personagem da carta que estivesse na mesa, por exemplo, jogar a Dona Clotilde (da sua mão) na carta do Seu Madruga (que estava na mesa) – a carta Dona Clotilde seria a nova carta na mesa.
A pegadinha deste modo é que cada um dos personagens possui uma proporção diferente de ícones de busca e, assim, alguns personagens acabam sendo mais procurados do que outros. Além disso, se um jogador jogar uma carta de um personagem que seja igual ao ícone de fuga da carta na mesa, ele irá gerar uma penalidade para outro jogador, pegando as todas as cartas da mesa e colocando em uma pilha para outro jogador, que será computada de forma negativa na partida.
Pode parecer complicado a primeira vista, mas como os ícones de busca e fuga de cada personagem se relaciona com as características de cada um na série, tudo fica muito mais intuitivo, afinal, quem conhece a série sabe que o Seu Madruga foge da Dona Florinda como o diabo foge da cruz.
Por fim, no terceiro modo de jogo, ou o modo da “vingança nunca é plena”, tivemos o objetivo de criar um jogo que apresentasse a mecânica de toma essa ao mesmo tempo em que desse uma evoluída no gerenciamento de mão em comparação com o modo anterior, agora com a introdução de habilidades diferentes para cada personagem.
Utilizando as mesmas cartas, os jogadores buscariam pontuar suas cartas através dos poderes que cada uma delas descreve. Assim, por exemplo, as cartas do Chaves, Nhonho e Quico permitem serem baixadas à frente do jogador e, tão logo as 3 estiverem presentes, serão colocadas em uma pilha de pontuação. Contudo, a carta da Popis permite que o jogador roube o Chaves, Quico ou Nhonho de outro jogador. Ou seja, a interação aqui vai ser bem alta.
Da mesma forma que os outros modos de jogo, as ações e consequências de cada carta tem relação direta com as características dos personagens da série, tornando o entendimento das regras durante a partida muito fluído e intuitivo, ao mesmo tempo em que o jogo fica muito imersivo. Não é preciso conhecer ou ter assistido o Chaves antes, mas depois que jogar, tenho certeza que quem não assistiu captará a essência de cada personagem e irá correndo procurar assistir ao episódio da Casa da Bruxa ou da Viagem para Acapulco. E se você já assistiu, ficará morrendo de vontade de rever.
Não pretendi com esse texto passar a explicação detalhada das regras, apenas mostrar um pouco do sentimento e experiência que busquei transmitir em cada um dos modos de jogo e explicar um pouco das motivações e propósitos de cada um deles. Chaves: Confusões na Vila, em seus 3 modos é um jogo simples, mas em todos eles um jogador experimentado também poderá encontrar nuances de malícia estratégica que permitirá que ele usufrua juntamente com os neófitos.
Chaves e toda a sua turma faz parte daquele material de entretenimento que busca divertir de forma universal e atemporal, simples e complexo ao mesmo tempo, e foi muito disso que busquei me inspirar na criação do jogo, pensando em todos os episódios clássicos que me deram muitos momentos de alegria. Essa lembrança afetiva dos sentimentos positivos que passei na minha infância é um pouco do que busquei passar neste jogo para que todas as gerações possam também encontrar a alegria nas coisas simples da vida. Espero que se divirtam também 🙂