Neste post, queria comentar um pouco sobre o papel que alguns temas acabam exercendo sobre um jogo, e como a percepção desse tema acaba sendo muito diferente dependendo de cada jogador. É quase que como querendo entender onde reside o tema: no jogo, ou no jogador? Mas antes disso, vamos falar como um jogo que tratava sobre um banquete acabou chegando em uma divertida disputa pelos doces mágicos do universo do Harry Potter.
Em meados de 2020, nosso time de produtos realizou algumas reuniões com o mestre Reiner Knizia (para quem não conhece, é um dos mais consagrados game designers do mundo) e recebeu alguns projetos para análise de eventual desenvolvimento e publicação. Dentre os projetos recebidos, uma pequena caixa acabou me chamando atenção por ter um tema sugerido bem inusitado: um banquete em família.
Passei então a ler o manual para entender melhor como funcionaria a mecânica em um jogo sobre banquete. Em síntese, a proposta do jogo era em torno de 5 tipos diferentes de cartas, cada tipo representando bebidas e comidas de um banquete, com valores que variavam de 1 a 5. Em cada turno o jogador teria que decidir entre abrir 2 cartas do baralho e pegar 1 ou as 2 cartas abertas para colocar à sua frente, OU pegar as cartas que já estava à sua frente e reservar em uma pilha de pontos. Simples assim. Transportando para o tema proposto, ou você pegava a sua refeição do banquete ou você comia aquilo que pegou.
Apesar de ser bem direto em termos de ações dos jogadores, alguns detalhes das regras acabavam entregando outros pontos de decisões para serem tomadas e que geravam uma maior interação entre os jogadores.
Essa simplicidade de regras permitia ainda uma conexão da mecânica de push your luck com o take that. No jogo, para você se valer de algo que interfira nos adversários, precisaria arriscar também. Com o perdão do trocadilho, nesse jogo não tem almoço grátis.
Apesar de achar bem inutistado o tema, entendiamos que o mesmo não teria muita aceitação e apelo como um produto final, ainda mais quando buscávamos um mercado mais abrangente em termos de público.
Contudo, em alguns dos testes que fizemos com o jogo, foi levantado em tom de brincadeira que seria bem bacana se ao invés de um banquete com comidas “normais” o jogo tratasse dos doces mágicos que tanto encantaram nos livros e filmes do Harry Potter. Que bom seria se tivéssemos disputando uma carta dos famosos Feijõezinhos de Todos os Sabores.
Fiquei matutando por um tempo esse comentário e começamos a discutir se efetivamente esse tema faria sentido dentro da proposta do jogo e chegamos a conclusão que realmente seria maravilhoso unirmos o game design com o pedigree do Knizia com uma das franquias mais famosas do mundo. E com isso, decidimos seguir com o início do desenvolvimento do que viria a ser o Harry Potter: Honeydukes.
Iniciamos a pesquisa para a criação da identidade visual do produto e vimos que grande parte dos jogos que tratavam do universo do Harry Potter tinham artes com imagens do filme, mas era algo que não queríamos trabalhar. Então nosso time de designers surgiu com uma primeira versão para o jogo, trabalhando a caixa do jogo como se fosse uma caixinha para os próprios Feijõezinhos e com um toque meio vintage, e quase como se fossem aqueles menus das lanchonetes americanas dos anos 50.
Ao mesmo tempo, já separamos os doces mais famosos para serem representados no jogo, e chegamos a lista básica dos seguintes: Bolos de Caldeirão, Bombons Explosivos, Sapo de Chocolate, Delícias Gasosas, e aquele que deu início a ideia de usarmos esse tema, os famosos Feijõezinhos de Todos os Sabores.
Porém, apesar de termos amado essa versão inicial, entendíamos que ela deveria se mostrar mais uniforme com outros produtos que também utilizavam a franquia Harry Potter. Então, seguimos com novas pesquisas que nos levaram a um livro publicado no estrangeiro e que trabalhava com os doces mágicos da Honeydukes.
Ficamos encantandos com esse livro e a forma como ele apresentava os doces e decidimos seguir a mesma linha editorial das artes licenciadas e criamos a versão final do produto, que seguiu sendo desenvolvido nessa identidade, agora mais em harmonia com outros produtos Harry Potter, contudo, sem se utilizar de fotografias para representar os doces, algo que queríamos evitar a todo custo.
Com essa mudança do tema, queríamos que os jogadores se sentissem como jovens estudantes de Hogwarts que, após voltarem da loja em Hogsmeade que dá nome ao jogo, começaram a apostar para ver quem comeria mais doces. Mas para isso, dependeria muito do próprio jogador se imaginar na pele desse estudante de magia, quase que exercitando seu roleplaying.
Daí, surge o questionamento que provoquei no início desse post: afinal, o tema está presente apenas no jogo ou também na imaginação do jogador? No caso do Honeydukes, o jogo em si não tem a representação de um tema específico, o jogo em si não simula algo do tema, ao contrário, ele se presta a ser um componente do universo dentro do tema para que o jogador (e não o jogo) simule o tema.
O jogador é o verdadeiro veículo que irá dar vida ao tema e, para isso, ele se vale dos componentes do jogo para representar seu papel. Não que para jogar Harry Potter Honeydukes, todo mundo precisa estar vestido com seu uniforme de Grifinória (se bem que seria maravilhoso ver isso), mas que para o tema se mostrar mais presente, precisa ter um desapego maior da realidade pelo jogador, para que ele se veja representando alguém dentro dos salões de Hogwarts, brincando com seus amigos, disputando para ver quem como mais os doces mágicos que acabaram de comprar.
Ou seja, no Harry Potter Honeydukes, o tema está muito mais presente na imaginação do jogador do que no próprio jogo e para que esse tema possa ser bem representado, precisa que o jogador se veja agindo como um participante do universo proposto pelo jogo, usando os componentes como se fossem verdadeiros objetos existentes apenas no campo da imaginação. E isso só é possível pela mágica da imaginação, que como vimos em Harry Potter, é algo muito real.